á poucos dias, minha amiga-irmã e eu decidimos rever todos os
nossos segredos adolescentes que guardamos em caixinhas muito bem decoradas desde
a época do colégio. Era um fim de tarde comum e eu, com os meus 28 anos de
idade, saí do consultório extremamente eufórica, tal como a adolescente entre
14 e 15 anos do início da década de 2000. A ideia de reviver todos aqueles pequenos
detalhes - que para as adolescentes da época não tinham nada de “pequenos” – era
como voltar no tempo e ser colegial novamente. Na adolescência, tudo é muito
mais intenso, mais dramático, mais cheio de vida – e de supostos fins da vida
também.
Ingrid adorava me escrever cartinhas. Desde muito cedo, já
dava sinais do quanto romântica era ela. Fazia isso com uma frequência razoável
e, não raro, pontualmente às 7h da manhã, ela me entregava um papel dobrado, às
vezes acompanhado de um envelope todo enfeitado feito à própria mão, escrito
com vários tons de caneta colorida. Não passava, geralmente, de uma folha
frente e verso, mas havia dias em que ela estava inspirada (tinha um paquerinha
novo!) e passava para a segunda folha. Ela escrevia à noite, no dia anterior, e
nela me contava todas as novidades das últimas 24 horas – embora estivéssemos
boa parte dessas 24 horas juntas.
Eu, desde muito cedo também, já dava sinais da minha lentidão
matinal pouco bem humorada. Estar no colégio às 7h não era necessariamente
estar acordada, especialmente quando a aula das 7h era de geografia ou história
– desculpe-me os que gostam, você pode ler “matemática e física” onde está “geografia
ou história”, por exemplo. Normalmente, só na aula das 9h é que eu estava no mode on e, nesse intervalo em stand by, as cartinhas que recebia me
ajudavam a acelerar e entrar no clima do colégio. Eu adorava receber as
cartinhas, juro, mas respondi umas três apenas (ela guarda muita mágoa disso, descobri
recentemente!). É que eu era mais prática e objetiva: rasgava uma folha do
caderno e, ali mesmo no meio da aula, iniciava uma troca de bilhetinhos sem fim
e já resolvia o assunto. Tudo bem, não tinha caneta colorida, envelope
enfeitado e todas essas coisas delicadas que os românticos gostam... é, pensando
bem agora, acho que deve ser por isso que ela guarda mágoa.
A verdade é que, seja na forma de cartinhas ou bilhetinhos descoloridos,
tudo estava ali retratado naquelas letras propositalmente trocadas para ficar
mais “cool”, influenciadas pelas novidades
da linguagem mIRQ e MSN. Alternavam-se letras maiúsculas e minúsculas, o “s”
virava “x”, o “c” ou o “q” virava “k”, abreviavam-se as palavras, usava-se uma
espécie de smiles manuais para
expressar um sentimento, resultando em algo do tipo:
B-jokinhaxxx da cArLinHaAa =]]]]]] e B-juuuuuxxx no s2 da GuigaxXx_
:****** ;p
Hoje me parece um tanto ridículo escrever desse jeito. Mas, não!
Nós estávamos ali naquelas letras, nas músicas que curtíamos na época, nos
dilemas e dramas adolescentes, nas brigas (sim, havia cartinhas de brigas na
caixinha!), tudo estava ali, tão real quanto palpável. Foi incrível ter isso!
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Arquivo pessoal: Clássica de 2003.
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O tempo passou e, agora, estamos nos últimos anos da década
de 2010. Hoje, não se escreve mais cartinhas. Acho que os adolescentes agora
não passam mais bilhetinhos no meio da aula porque é mais fácil e mais rápido
escrever no whatsapp. Os smiles já estão prontos lá, basta um
clique para se transmitir um suposto sentimento – cá entre nós, um tanto confuso
de se entender. Até porque agora o whatsapp
aumentou indiscriminadamente o tamanho dos emojis.
Vocês viram? Que absurdo! Suponhamos...
Eu quero mandar um beijo comedido, discreto e simples, daí a
gente coloca apenas um emoji de
beijo, mas vai um emoji gigaaaaante
pra pessoa! Como a pessoa vai entender que era apenas um beijo simples? Daí, o
tamanho do emoji só diminui quanto
maior for a quantidade de emojis
enviados de uma só vez, isto é, eu teria que mandar vários beijos pra o emoji ficar pequeno. What???? Eu queria só UM beijo simples e
discreto, mas só posso mandar ou um beijo gigante ou vários beijinhos.
Definitivamente, não há como a pessoa não receber a minha intenção de beijo
simples e discreto como um beijo grande e extravagante. Não dá!
Hoje, há também uma infinidade de risos virtuais. Não que
eles não existissem antes, mas hoje a efemeridade das relações virtuais não te
permite distinguir com clareza a expressão de cada um deles como podíamos fazer
nas relações mais palpáveis de antigamente. Exemplos:
1. Resposta a sua mensagem com um “kkkkkkk” - interpretação: chorou
de rir com a informação anterior, podendo também ser substituído pelo emoji rindo e chorando?
2. Resposta com um “rsrsrs” – interpretação: riso de canto para
a informação anterior sem graça, com o objetivo de não te deixar no vácuo, podendo
ser substituído por expressões como: “hum”, “tá”, ou o emoji de mãozinha dando um legal?
Entre esses extremos, ainda existe o “hahaha”, “kakaka”, “hehehe”
e há ainda quem use um “kekeke”. Vai entender...
Mas, muito além das supostas interpretações de emojis prontos, a modernidade fez com
que a gente não mais guardasse conversas. A gente deixa as janelas de diálogos
guardadas conforme a memória do smartphone
permita e quando recebemos a mensagem de armazenamento quase cheio,
desfazemo-nos das conversas antigas. A nossa memória agora parece ser medida em
bytes e suas demais escalas. Não existe mais uma caixinha muito bem decorada
cheia de medalhas, fotos e papéis enfeitados. A gente quase nem revela mais fotos.
No máximo, quando nos sobra um pouco de tempo, a gente salva em outra memória
maior, medida em terabytes talvez, com
um tamanho tão pré-determinado quanto, bem longe da infinitude do coração, da leveza
da alma e do tato com a emoção.
Acho que vou ensinar a meus futuros filhos a escreverem mais do que
digitarem. Algumas coisas valem cada metro de espaço real que a gente precisa
reservar para guardá-las na alma.
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P.S. Com esse texto, eu estou me redimindo e pelo menos as minhas três gerações futuras de cartinhas supostamente não respondidas!
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