06 fevereiro 2017

Cartas para Juliane - à moda antiga.






H

á poucos dias, minha amiga-irmã e eu decidimos rever todos os nossos segredos adolescentes que guardamos em caixinhas muito bem decoradas desde a época do colégio. Era um fim de tarde comum e eu, com os meus 28 anos de idade, saí do consultório extremamente eufórica, tal como a adolescente entre 14 e 15 anos do início da década de 2000. A ideia de reviver todos aqueles pequenos detalhes - que para as adolescentes da época não tinham nada de “pequenos” – era como voltar no tempo e ser colegial novamente. Na adolescência, tudo é muito mais intenso, mais dramático, mais cheio de vida – e de supostos fins da vida também.

Ingrid adorava me escrever cartinhas. Desde muito cedo, já dava sinais do quanto romântica era ela. Fazia isso com uma frequência razoável e, não raro, pontualmente às 7h da manhã, ela me entregava um papel dobrado, às vezes acompanhado de um envelope todo enfeitado feito à própria mão, escrito com vários tons de caneta colorida. Não passava, geralmente, de uma folha frente e verso, mas havia dias em que ela estava inspirada (tinha um paquerinha novo!) e passava para a segunda folha. Ela escrevia à noite, no dia anterior, e nela me contava todas as novidades das últimas 24 horas – embora estivéssemos boa parte dessas 24 horas juntas.

Eu, desde muito cedo também, já dava sinais da minha lentidão matinal pouco bem humorada. Estar no colégio às 7h não era necessariamente estar acordada, especialmente quando a aula das 7h era de geografia ou história – desculpe-me os que gostam, você pode ler “matemática e física” onde está “geografia ou história”, por exemplo. Normalmente, só na aula das 9h é que eu estava no mode on e, nesse intervalo em stand by, as cartinhas que recebia me ajudavam a acelerar e entrar no clima do colégio. Eu adorava receber as cartinhas, juro, mas respondi umas três apenas (ela guarda muita mágoa disso, descobri recentemente!). É que eu era mais prática e objetiva: rasgava uma folha do caderno e, ali mesmo no meio da aula, iniciava uma troca de bilhetinhos sem fim e já resolvia o assunto. Tudo bem, não tinha caneta colorida, envelope enfeitado e todas essas coisas delicadas que os românticos gostam... é, pensando bem agora, acho que deve ser por isso que ela guarda mágoa.

A verdade é que, seja na forma de cartinhas ou bilhetinhos descoloridos, tudo estava ali retratado naquelas letras propositalmente trocadas para ficar mais “cool”, influenciadas pelas novidades da linguagem mIRQ e MSN. Alternavam-se letras maiúsculas e minúsculas, o “s” virava “x”, o “c” ou o “q” virava “k”, abreviavam-se as palavras, usava-se uma espécie de smiles manuais para expressar um sentimento, resultando em algo do tipo:

B-jokinhaxxx da cArLinHaAa =]]]]]] e B-juuuuuxxx no s2 da GuigaxXx_ :****** ;p

Hoje me parece um tanto ridículo escrever desse jeito. Mas, não! Nós estávamos ali naquelas letras, nas músicas que curtíamos na época, nos dilemas e dramas adolescentes, nas brigas (sim, havia cartinhas de brigas na caixinha!), tudo estava ali, tão real quanto palpável. Foi incrível ter isso! 


Arquivo pessoal: Clássica de 2003.

O tempo passou e, agora, estamos nos últimos anos da década de 2010. Hoje, não se escreve mais cartinhas. Acho que os adolescentes agora não passam mais bilhetinhos no meio da aula porque é mais fácil e mais rápido escrever no whatsapp. Os smiles já estão prontos lá, basta um clique para se transmitir um suposto sentimento – cá entre nós, um tanto confuso de se entender. Até porque agora o whatsapp aumentou indiscriminadamente o tamanho dos emojis. Vocês viram? Que absurdo! Suponhamos...

Eu quero mandar um beijo comedido, discreto e simples, daí a gente coloca apenas um emoji de beijo, mas vai um emoji gigaaaaante pra pessoa! Como a pessoa vai entender que era apenas um beijo simples? Daí, o tamanho do emoji só diminui quanto maior for a quantidade de emojis enviados de uma só vez, isto é, eu teria que mandar vários beijos pra o emoji ficar pequeno. What???? Eu queria só UM beijo simples e discreto, mas só posso mandar ou um beijo gigante ou vários beijinhos. Definitivamente, não há como a pessoa não receber a minha intenção de beijo simples e discreto como um beijo grande e extravagante. Não dá!

Hoje, há também uma infinidade de risos virtuais. Não que eles não existissem antes, mas hoje a efemeridade das relações virtuais não te permite distinguir com clareza a expressão de cada um deles como podíamos fazer nas relações mais palpáveis de antigamente. Exemplos:

1. Resposta a sua mensagem com um “kkkkkkk” - interpretação: chorou de rir com a informação anterior, podendo também ser substituído pelo emoji rindo e chorando?
2. Resposta com um “rsrsrs” – interpretação: riso de canto para a informação anterior sem graça, com o objetivo de não te deixar no vácuo, podendo ser substituído por expressões como: “hum”, “tá”, ou o emoji de mãozinha dando um legal?

Entre esses extremos, ainda existe o “hahaha”, “kakaka”, “hehehe” e há ainda quem use um “kekeke”. Vai entender...

Mas, muito além das supostas interpretações de emojis prontos, a modernidade fez com que a gente não mais guardasse conversas. A gente deixa as janelas de diálogos guardadas conforme a memória do smartphone permita e quando recebemos a mensagem de armazenamento quase cheio, desfazemo-nos das conversas antigas. A nossa memória agora parece ser medida em bytes e suas demais escalas. Não existe mais uma caixinha muito bem decorada cheia de medalhas, fotos e papéis enfeitados. A gente quase nem revela mais fotos. No máximo, quando nos sobra um pouco de tempo, a gente salva em outra memória maior, medida em terabytes talvez, com um tamanho tão pré-determinado quanto, bem longe da infinitude do coração, da leveza da alma e do tato com a emoção.

Acho que vou ensinar a meus futuros filhos a escreverem mais do que digitarem. Algumas coisas valem cada metro de espaço real que a gente precisa reservar para guardá-las na alma.

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P.S. Com esse texto, eu estou me redimindo e pelo menos as minhas três gerações futuras de cartinhas supostamente não respondidas!